Há algumas semanas uma instalação
artística chamou a atenção do mundo. Em Claremont, na Califórnia, uma Igreja
Metodista apresentou um presépio onde estavam colocados o menino Jesus, Maria e
José, cada qual isolado em gaiolas individuais, como as que são usadas nos EUA
para a detenção de imigrantes ilegais. A mensagem é clara: a forma rude com que
os imigrantes são tratados ali, numa nação
de imigrantes, fere na raiz a qualquer direito humano e princípio cristão.
A denúncia atinge em cheio o falso moralismo de parte daquela (e da nossa
ocidental) sociedade, ao chocar-se com a observância bíblica que não recomenda,
mas ordena: “E quando o estrangeiro peregrinar convosco na vossa terra, não o
oprimireis. Como um natural entre vós será o estrangeiro que peregrinar
convosco; amá-lo-ás como a ti mesmo, pois estrangeiros fostes na terra do Egito”
(Levítico 19.33,34).
Que bom que o Natal serviu de
veículo para uma crítica de tal pertinência. Por sinal, a essencialidade do
Natal vem se perdendo já há quase dois séculos. O São Nicolau turco, depois um sincrético
senhor de elfos finlandês, foi apropriado, remixado e exportado pela indústria
e mainstream norte americanos, e o
Papai Noel tornou-se a figura central de uma festa que deveria celebrar o
deus-migrante e sem posses que vagou (“o Filho do Homem não tem onde reclinar a
cabeça”, Mateus 8.20b) entre nós.
O capitalismo tem isso de matrix:
fiel tributário da Lei de Lavoisier, o químico francês que postulou que (na
natureza) nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, ele devora, adapta,
rearranja do que há do mais sujo ao mais sagrado e põe a vender na lojinha da
esquina, no site da Amazon ou num leilão da Sotheby’s.
Ainda que nos esqueçamos do
motivo singelo do Natal, ainda que ele seja prostituído, dessacralizado numa
ritualística de consumismo e hipocrisia, glutonaria e bebedeira (sem falso
moralismo aqui; apenas que todo excesso é pernicioso), o motivo ainda está lá,
num berço improvisado num curral palestino ou numa gaiola californiana: a
criança de Belém continua a nascer a cada ano e a cada dia de cada ano,
continua a resistir e a estender seus improváveis e ternos braços para os que
precisam de seu tesouro, seu abraço: veículo de concórdia, fraternidade e
conciliação entre os homens.
Sammis Reachers
Artigo publicado originalmente no Jornal Daki
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