sábado, 14 de julho de 2012

Contra o tráfico de mulheres e crianças - Entrevista com a jornalista Priscila Siqueira


O tráfico humano para exploração sexual é a terceira maior fonte de renda ilegal do mundo e o Brasil é o maior “exportador” das Américas. É contra esse universo pavoroso que luta a jornalista Priscila Siqueira. Do lado de lá, o criminoso declara que é melhor vender mulher a drogas e armas porque drogas e armas só se vendem uma vez – e a mulher pode ser revendida até morrer ou ficar louca


Extraído de Planeta Sustentável - http://planetasustentavel.abril.com.br

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"Quem suporta conviver com o fato de uma criança, mantida prisioneira em um bordel, ter o intestino perfurado durante uma relação sexual?”, pergunta com indignação a jornalista Priscila Siqueira, 69 anos. Em sua casa, em São Sebastião, no litoral paulista, ela conta que, desde 1996, passa boa parte do seu tempo em viagens pelo país e pelo exterior. O objetivo: denunciar o tráfico humano para exploração sexual e exigir medidas oficiais para acabar com ele. “ Muita gente ainda duvida de que esse comércio exista ou fica indiferente, talvez acreditando que o problema é grande demais para ser enfrentado”, diz. 

Mas não dá para fechar os olhos a um negócio que, depois do contrabando de armas e drogas, é a maior fonte de renda ilegal do mundo e também a que mais cresce. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o lucro mundial com esse tráfico chega a 31,6 bilhões de dólares ao ano. “O Brasil é o maior exportador de crianças e mulheres para prostituição das Américas e serve como país de trânsito para aliciadas nas nações latino-americanas a caminho da Europa, Ásia e dos Estados Unidos”, afirma. 

Seu primeiro contato com o tema deu-se na Suécia, no 1º Congresso Mundial contra a Exploração Comercial e Sexual de Crianças e Adolescentes, realizado pelo Unicef, órgão das Nações Unidas para a infância. Voltou chocada. “O cálculo era de 1 milhão de crianças traficadas no mundo. Isso sem contar jovens e adultos”, lembra. Começou então a divulgar o assunto na mídia brasileira com a equipe da ONG Serviço à Mulher Marginalizada (SMM), da qual é uma das articuladoras. “Quando falávamos em tráfico de crianças e mulheres no país, nos chamavam de loucas, escreviam para as redações dizendo que isso não existia”, recorda. 

O ceticismo não desanimou essa ativista paranaense, mãe de cinco filhos, com uma experiência de 50 anos de militância. Ainda na faculdade, em Curitiba, integrou a Juventude Universitária Católica, que teve participação importante nos movimentos sociais brasileiros das décadas de 1950 e 1960. Depois de casada e formada, morando no Rio de Janeiro, fazia um trabalho preventivo de saúde visitando periferias e zonas de prostituição. Em 1963, mudou com o marido para São Sebastião, onde continuou o trabalho de conscientização. Nas décadas de 1970 e 1980, dedicouse a denunciar a especulação imobiliária no litoral e a expulsão de caiçaras e indígenas das suas terras, publicando o livro GENOCÍDIO DOS CAIÇARAS (ED. MASSAO OHNO, esgotado) e, em 1993, foi trabalhar no SMM. Sua luta na denúncia do tráfico de mulheres levou-a a escrever também o estudo Oferta, Demanda, Impunidade – Tráfico de Mulheres. 

Quem são as principais vítimas do tráfico para exploração sexual? 

Existe um tráfico interno poderoso, que atinge principalmente adolescentes. A maioria é aliciada no interior e levada para as cidades mais ricas ou para locais com alta concentração de mão-de-obra masculina. Para o exterior, seguem as maiores de 18 anos, com baixa escolaridade, muitas delas afro-descendentes e mães solteiras. A Pesquisa Nacional sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes (Pestraf), realizada em 2002 pelo Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria), com participação de várias ONGs, apontou 110 rotas de tráfico interno (78 interestaduais e 32 intermunicipais) e 131 de tráfico internacional. 

Como ocorre o aliciamento? 

Elas recebem, na cidade onde vivem, uma roupa bonita, documentos e, se estão indo para o exterior, uma grana para passar pela alfândega. Quando chegam ao país de destino, alguém já as espera no aeroporto e tira delas o passaporte e o dinheiro, fazendo com que comecem a se prostituir. Nordeste e Centro-Oeste são as principais regiões de origem. 

Ao sair, elas sabem que serão prostitutas? 

A maioria é enganada com a promessa de trabalhar como dançarina, recepcionista de boate, babá ou cuidadora de idosos.Outras sabem que serão prostitutas. O que todas desconhecem é que vão viver em situação de escravidão. É diferente das mulheres que, por conta própria, juntam dinheiro, compram sua passagem e vão se prostituir num país rico. Se não houve aliciamento, se a mulher é livre para tomar suas decisões, se é maior de idade, a opção é dela. Nossa luta não é moral, mas por direitos humanos. 

Há servidão por dívida, como no trabalho escravo rural? 

Sim. As mulheres aliciadas deixam o país com uma dívida de passagem, roupa e documentação. Uma pesquisa da Unanima (ONG de combate ao tráfico, formada por congregações católicas femininas e sediada em Nova York) calcula que a dívida da mulher que sai do Brasil para Madri ou Lisboa equivale a 4,5 mil relações sexuais. Como nem em um ano inteiro é possível para uma mulher manter essa quantidade de relações, cria-se uma dependência crescente. Caso diga que quer ir embora, passará a sofrer ameaças. Ela chega nova, bonita e, à medida que envelhece, é revendida como um objeto. Um cafetão canadense declarou para a MACLEAN’S (revista semanal do Canadá) que preferia vender mulheres a drogas e armas porque drogas e armas só se vendem uma vez, enquanto a mulher pode ser revendida até morrer de aids, ficar louca ou se matar. 

Então, não há saída para essas mulheres? 

Só se contarem com a solidariedade da sociedade e das ações do Estado. Vivem sob vigilância, moram nas boates onde atendem os clientes e, quando telefonam para a família, geralmente estão acompanhadas de um funcionário da boate. Há testemunhos de que existem até sistemas internos de TV nos bordéis para mantê-las sob controle. Uma vez recebemos um telefonema de uma jovem na Espanha que havia fugido com a ajuda de um cliente, mas estava sem dinheiro e não tinha para onde ir. 

Isso significa que é preciso um trabalho em rede? 

Sim. O crime é organizado e enfrentá-lo exige o envolvimento dos governos e a formação de redes nacionais e internacionais. Esse combate tem três frentes: a prevenção, o atendimento às vítimas e a repressão e punição. A sociedade pode atuar na prevenção, para que as pessoas fiquem menos vulneráveis ao apelo de ganhar muito dinheiro lá fora. No atendimento às vítimas, as ONGs contribuem oferecendo assistência jurídica, social e psicológica para as mulheres refazerem a vida, mas não substituem o Estado, cuja ação é fundamental. Já a criminalização cabe à polícia e ao Estado. Hoje, os traficantes não são punidos porque as vítimas não os denunciam temendo pela própria segurança e também da família. 

Como fica a mulher que passa por esse trauma? 

A mulher escravizada é reduzida a uma mercadoria. Ela precisa de ajuda para se reestruturar e de alternativas para se profissionalizar, ter uma ocupação e não voltar para a malha do tráfico. Não adianta conscientizar sem dar opções a essa mulher. Eu estava em um bordel, em Rondonópolis, no Mato Grosso, alertando sobre o tráfico quando uma garota lindíssima, de 23 anos, me disse que já havia recebido passaporte, roupa nova e passagem. Avisei que ela ia pagar muito caro por aquilo, pois estava sendo aliciada. E ela respondeu: “Ferrada eu já estou. Tenho uma criança de 2 anos para criar e pais idosos para ajudar. Se a senhora es tivesse na minha situação, também tentaria uma vida melhor”. Isso mostra que a luta é maior e envolve mudanças nas estruturas socioeconômicas. 

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