sexta-feira, 23 de abril de 2021

Crônica: Vossa Excelência, o Lembrador-Geral da Nação

Cartaz do "filme" sobre a CPI instalada e depois desinstalada na Câmara durante o governo Nanci/Arte: Helcio Albano, inspirado em película de José Mujica Martins, o Zé do Caixão

Somos um país sem memória.” A frase, já quase um chavão, deu início a inúmeras crônicas, artigos e notícias ao longo de nossa malbaratada história.


Pindorama, nome que os nativos tupis davam ao Brasil, sofre desse mal que, sim, não é apenas nosso.


Mas aqui em nosso Brasil continental há uma espécie de celebração do olvido, do lapso de memória. Como se estivéssemos sempre – sejamos do time dos foliões ou dos anti-carnavalescos – em pós-carnaval, ávidos por esquecer nossos pecadilhos.


Os esquecimentos ocorrem, por um lado, ao sabor do acaso, quando o ante-ontem é engolido pelo ontem, e este pelo hoje; os acontecidos de agora há pouco são atropelados pelas subsequentes lides do dia-a-dia, os fatos e dores que se avolumam a cada nascer do astro-rei. E essa naturalidade dos esquecimentos foi dinamizada por mil com as redes sociais, a web-aldeia eletrônica e seu tsunami de informações que não passam pelo filtro do limite ou pela peneira da verdade.

Mas esquecimentos também se dão ao sabor da perniciosa, quase pornográfica seletividade dos “senhores da história”. Sim, os donos da narrativa, que fabricam a sua versão e a repetem tanto que chegam a nela acreditar: seja seu Antônio do bar da esquina, “que estava vivo naquele tempo e nunca viu a Ditadura incomodar trabalhador”; seja o Ali Kamel, chefe de jornalismo da Globo, Globo que (ainda) elege e derruba reis e rainhas; o padre que diz que o fiel não pode interpretar a Bíblia sem o intermédio/filtro da Santa Madre Igreja... E tem cereja no bolo: o professor de história que parece tem um bonequinho vodu do Stálin no lugar do coração, e marcha amargurado, crente (opa!) que há acerto em seu desconcerto dialético.


Esse problema crônico de nossa cronicidade memorial pátria me levou a fantasiar dia desses um novo personagem, uma figura tão necessária que deveria, já em seu nascimento o conjuro (pois coisa-ruim nem é parida, é conjurada), ser alçada a ministro de Estado, com direito a corte e entourage, meritocráticos profissionais de carreira e mamadores indicados (“cargo de confiança”), como compete a qualquer ministério ou puxadinho estatal. Trata-se de Vossa Excelência o Lembrador-Geral da Nação.

Dentre as atribuições múltiplas deste memorioso, deste cabeção, deste mestre-alcagueta, ombudsman da vida pública, todas se bifurcariam num mesmo e pacífico ponto: Lembrar-se. Lembrar principalmente o que o acaso ou as $eletividades eletiva$ parecem que nos forçam a esquecer.


Os três meninos pretos de Belford Roxo, desaparecidos há 113 (CENTO E TREZE) dias, lembra?, poderiam figurar na agenda inaugural. Agenda que, de tão abarrotada, haveria de ser decomposta em sub-pastas: Lembranças do “Descobrimento”; Lembranças da Ditadura; Lembranças dos Escravos de Zumbi (queridos, até aqui, numa hipotética primeira semana de trabalhos, já deu pra perceber que vai sobrar pra gregos e troianos, hum? Pois será exatamente esta a função ideal do Lembrador-Geral: Rememorar, rememorar o que foi pisoteado na lama do deixa-disso, desentocar as simonias dos pretensos santos, desconstruir os pilares da acomodação geral dos fatos que em muitos currículos é chamada de História).

Uma luta inglória digna de Sísifo – ou Hércules, aquele que sacaneou o sogro de Sísifo, o titã Atlas, lembra? Tá vendo, é disso que falo: Nós nos esquecemos, e nem nos sentimos culpados. Daí a urgência de ministério que nos socorra.


Sim, pois nossa raça tem o traço da bovinidade, da pacatitude – das quais o esquecimento é uma das armas ou muletas fundamentais. E a função deste antitético ministro seria ir de encontro a nosso marasmo, nossa celebração das desimportâncias – marasmo que, por esse sim!, estamos dispostos a combater com unhas e dentes. Ou você já se esqueceu o que foi feito quando certa passagem de ônibus foi aumentada em 0,20 centavos? Pois o ministro, que ainda nem ecxiste, guarda viva a memória daqueles dias. E de seus revoltosos, hoje desaparecidos...


Perto das eleições presidenciais, V. Ex.ª o ministro Lembrador, como compete a qualquer empregado, acorreria aos currais Brasil afora em busca de votos para o mandatário da vez, fosse Bozo, Lula ou um Itamar redivivo (lembra do Itamar, não é?). Quem sabe daria com os olhos inquiridores em nossa São Gonçalo, a de tantos eleitores? Eita ferro, que aqui tem pepino! Bora ver?


O morro localmente chamado de Bolo da Noiva, divisa entre Tribobó e Maria Paula, durante toda a década de oitenta foi utilizado como local de extermínio e desova. Pode computar aí humílimos 100 mortos ali jogados, só pra inícios de trabalho. Cortesia dos grupos de extermínio e meganhas daqueles idos. Nos anos 90 foi descoberto um cemitério clandestino (sim, muitos não eram apenas jogados, mas desfrutavam da ‘civilidade’ de um enterro). Num único trecho foram encontrados 29 cadáveres. VINTE E NOVE. Você, gonçalense, está lembrado?


E aí? Descobriram-se as identidades daquele amontoado de anônimos? As mães que esperaram por anos seus desaparecidos, foram avisadas? Os mesmos de sempre, responsáveis por tantos cadáveres, foram investigados? Como, se as $eletividades forçam tudo ao esquecimento? Alguns dos responsáveis ainda andam por aí, com seus cabelos agora brancos, mas ainda senhores da narrativa, ainda fazendo valer sua versão.


Falando em cemitérios: E aquele fuzuê dos cambalachos supostamente descobertos na administração das necrópoles municipais, durante a governança pregressa? Alguém se lembra? Uhh, lembrou dessa, hein, gonçalense?! Muito bem! Mas, e essa lembrança, deu nalguma consequência?


Ah, ministro! O Brasil precisa de você!
Sammis ReachersPublicada originalmente no Jornal Daki.

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