sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Decadência e Regeneração da Cultura: Algumas reflexões de Albert Schweitzer

 


Liberdade material e liberdade espiritual estão intimamente ligadas. A cultura subentende homens livres. Por esses, somente por esses, é que ela pode ser ideada e realizada.

 (...)

Dificulta-se de dia para dia o trato de homem para homem. Pela precipitação de nosso modo de viver, pela intensidade do trânsito, pelo trabalho em conjunto nos escritórios e pela moradia em comum de muitas pessoas em pequeno espaço, recebemos, continuamente e pelos mais variados modos, a impressão de que somos estranhos a conviver com estranhos. As circunstâncias da vida não permitem que convivamos de outro modo, de homem para homem. Essa restrição que nos é imposta no livre exercício da convivência humana torna-se tão generalizada, tão cotidiana, tão íntima, que afinal terminamos nos afeiçoando à situação reinante, a ponto de não mais darmos acordo de que a nossa conduta impessoal, em tudo e por tudo, representa de fato uma anormalidade. Em muitas e muitas situações chegamos até a não sentir mais essa impossibilidade de conviver de homem para homem, indo afinal ao cúmulo de não fazê-lo quando isso se torna possível e até mesmo oportuno. (...) As afinidades com o nosso próximo desaparecem. Estamos aí a caminho franco da desumanização. Onde a ideia de que a pessoa como pessoa nos deva interessar periclita, periclitam também com ela a cultura e a moral. Daí para a desumanização completa da vida pouco vai; é questão apenas de tempo.

 (...)

Toda a nossa vida espiritual decorre dentro de organizações. Desde a infância, o homem da atualidade é de tal forma assediado pelas ideias de disciplina que aos poucos vai perdendo de vista a sua existência individual, para somente continuar vivendo e pensando dentro do espírito de uma coletividade. De um conflito entre modo de pensar e modo de pensar, de choques de ideias entre uns e outros, que fazia a grandeza do Século Dezoito, hoje não se tem mais notícia. Naqueles áureos tempos não se reconhecia a obrigação de acatar o modo de pensar das coletividades. Todas as ideias, fossem quais fossem, tinham de passar primeiro pelo crivo da opinião de cada um. Hoje, porém, está arvorada em regra comum, e muito natural, submeterem-se todos, sem discrepância, às concepções coletivas vigentes nas sociedades organizadas. Tanto para si como para os outros o indivíduo estabelece, de antemão, que em matéria de nacionalidade, confissão, filiação partidária, profissão e semelhantes cogitações já existem à priori, em cada caso, um certo número de concepções firmes e intangíveis. Essas têm força de um tabu e estão definitivamente a salvo não só da crítica como até de serem objeto de uma simples e inocente palestra. Esse sistema pelo qual mutuamente nos sonegamos a qualidade de seres pensantes, é por eufemismo chamado "respeito pelas convicções", como se pudesse existir uma convicção sem pensamento e crítica.

  (...)

Quando a mata virgem é derrubada, surge em seu lugar a capoeira, de vegetação mais fraca. Assim também, quando as grandes convicções são desbancadas, são logo substituídas em suas funções por outras muitas, de menor significado, cujos efeitos redundam em algo pior.

  (...)

Os mais árduos problemas com que temos de arcar, até mesmo aqueles de feição caracteristicamente econômica ou material, em última análise só podem ser solucionados pela predisposição espiritual. A mais perfeita reorganização das coisas poderá ir até certo ponto, depois emperra. Nenhuma outra possibilidade imaginável existe de renovação do mundo, a não ser aquela mediante a qual primeiro nos resolvamos, embora esmagados sob peso de duras contingências, a nos tornar homens novos, inaugurando uma sociedade nova, com renovados propósitos, harmonizando os desentendimentos reinantes entre os povos, possibilitando assim o redespertar da cultura. Tudo o mais é tempo perdido, porque estamos fazendo a sementeira não de coisas do espírito, mas de preocupações meramente externas da vida.

  (...)

A história de nosso tempo é de uma imbecilidade sem precedentes. Futuros historiadores hão de extenuar nela sua argúcia e sua erudição, dissecando-a em todos os sentidos. A explicação dela, porém, para os nossos dias, como para todos os tempos vindouros, é bem simples de ser enunciada, a saber, somos uma geração que pretendeu edificar uma cultura sem fundamento moral; eis tudo.

  (...)

Os ideais culturais de que o nosso tempo precisa não lhe são estranhos. Já estiveram de posse da humanidade em tempos passados e andam por aí em tantas fórmulas passadistas. Em suma, nada mais resta a fazer que restabelecer-lhes o antigo prestígio, tomando novamente a sério o tema da cultura espiritual. E é o que podemos realizar mediante o simples processo de cada um se colocar em choque com a desnorteada realidade ambiente.

  (...)

Todas as épocas vivem consciente ou inconscientemente sob a influência das ideias formadas pelos seus pensadores.

  (...)

A derradeira forma do saber, em que o homem chega à compreensão do próprio ser no ser universal é, costuma-se dizer, de índole mística. Com isso queremos dizer que já não se manifesta numa reflexão comum, mas é, de algum modo, intuída.

Mas por que razão supormos agora que a estrada do pensamento se detém diante da mística? Não resta dúvida de que até agora a razão raciocinante costumava estacar nas imediações da mística, só se dispondo a ir para a frente enquanto houvesse possibilidade de se alargar sem prejuízo da lógica. Por seu lado, a mística desbancava, tanto quanto podia, a razão raciocinante para não permitir que surgisse a ideia, como se a mística de algum modo tivesse de prestar contas à razão. No entanto, essas duas, que nada querem saber uma da outra, se completam.

É na reflexão que o discernimento e a vontade, que dentro em nós estão ligados de maneira misteriosa, procuram compreender-se. O supremo saber a que aspiramos, é o conhecimento da vida. O nosso discernimento vê a vida por fora, a nossa vontade por dentro. E, assim, desde que a vida é o derradeiro objeto do saber, será também o supremo saber experiência pensante da vida.

  (...)

Quando o pensamento se põe a caminho, deve estar disposto a tudo, até à hipótese de não conseguir chegar a conclusão alguma. Mesmo assim, se a nossa predisposição de agir estivesse fadada a lutar indefinidamente e sem resultado com essa ausência de sentido da vida e do mundo, mesmo assim, essa dolorosa condição de perplexidade seria ainda melhor que permanecer alheio a qualquer reflexão, uma vez que o próprio estado de perplexidade já representa um caminho de purificação.

Contudo, não existe ainda a necessidade de uma tal resignação. Sentimos a afirmação da vida como algo necessário e valioso. Donde deduzirmos que, de algum modo, essa afirmação encontre suas bases na reflexão. Surgindo em nosso desejo de viver, deve ter também a sua explicação no sentido da vida. É possível que seja necessário estabelecer de outro modo, diferentemente do que se tem feito até agora, o fundamento da concepção da vida no tocante à afirmação da existência e do mundo. O pensamento até à hora presente cuidava em extrair do sentido do mundo o sentido da vida. É possível que sejamos compelidos a deixar de lado a ideia do sentido do mundo e ir buscar no desejo de viver, que existe em nós, o sentido da vida.

Embora os caminhos pelos quais tenhamos que trilhar ainda sejam obscuros, a direção que temos de tomar é clara. Compete a todos, no conjunto, procurar saber qual seja o sentido da vida, e de lutar cm conjunto para conseguir esse objetivo, a fim de que se consiga estabelecer uma concepção afirmativa do mundo e da vida, em que a predisposição de agir que sentimos como indispensável e valiosa encontre apoio, orientação, clareza, profundidade, sentido moral e fortalecimento. 


Reflexões extraídas do livro Decadência e Regeneração da Cultura (Edições Melhoramentos, 1959).


Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...