domingo, 20 de maio de 2018

Magistocracia, a "gran famiglia" do Judiciário brasileiro


CONRADO HÜBNER

A democracia brasileira depositou no Poder Judiciário parte das esperanças de transformação social trazidas pela Constituição de 1988. A aposta aliou um catálogo de direitos a um repertório de ferramentas processuais de efetivação. Essa espetacular missão, contudo, caiu no colo de magistocratas. A magistocracia é mais nociva do que o temido “governo de juízes”. Magistocratas não querem tanto o ônus de governar e responder por seus atos, pois preferem o gozo discreto de seus privilégios materiais e de status. Não ser incomodados em seu condomínio lhes basta: realizam-se no exercício de seus micropoderes privados, fora dos holofotes. Ali está sua concepção de vida boa.
A promessa de 1988 fracassou e a corporação judicial tem sua fração de responsabilidade. Permaneceu refratária à incorporação de princípios de controle e de transparência a sua estrutura e sua prática institucionais e ampliou modestamente o acesso à Justiça e o grau de pluralidade demográfica dos juízes de primeira instância. Resistiu quanto pôde às mais simples formas de abertura e prestação de contas.
Magistocratas vivem num mundo à parte. O processo de assimilação à corporação passa por uma eficiente anestesia ética: poucos têm tamanho contato, desde o andar de cima, com as mazelas do andar de baixo da sociedade brasileira; poucas instituições têm tamanha capilaridade e oportunidade de proteger os mais vulneráveis contra abuso do poder político e econômico; não há quem melhor pratique seu poder corporativo para pleitear gratificações nos métodos da baixa política. Pouco importa qualquer valor republicano ou ponderação de justiça desabonadores.
“Governo de juízes” é expressão hiperbólica que aponta usurpações de poder pelo Judiciário na separação de Poderes. “Ativismo judicial” é equivalente.
A magistocracia é distinta: corrói a cultura democrática e sua pretensão igualitária. Em geral, o debate público brasileiro sobre o Judiciário tende a se concentrar no que juízes fazem ou deixam de fazer no exercício da função jurisdicional. Um ângulo fundamental, mas insuficiente. Precisamos discutir quem os juízes são, de onde vêm, o que pensam, como vivem. Ao lado da dimensão política — o quantum de poder — há uma dimensão social — o quantum de privilégios. Esta é indispensável para observar a relação do Judiciário com a democracia.
A magistocracia tem cinco atributos: é autoritária, autocrática, autárquica, rentista e dinástica. Autoritária porque viola direitos (é coautora intelectual, por exemplo, do massacre prisional brasileiro); autocrática porque reprime a independência judicial (juízes insubordinados são perseguidos por vias disciplinares internas); autárquica porque repele a prestação de contas (e sequestra o orçamento público a título de “autonomia financeira”); rentista porque prioriza interesses patrimoniais (agenda corporativa prioritária); e dinástica porque incorpora, sempre que pode, os herdeiros à rede.
Nem todo juiz, obviamente, é um magistocrata, mas esse é o ethos institucional que os governa. Um Judiciário independente, competente e imparcial é indispensável à democracia. A magistocracia é adversária desse projeto. Juízes não são beneficiários passivos da desigualdade brasileira, pois ocupam lugar estratégico para sua manutenção e não desperdiçam a oportunidade.
A batalha pelo aumento salarial fantasiado de auxílio-moradia (com isenção tributária) é exemplo menor de uma patologia profunda. O líder momentâneo da causa é um magistocrata de raiz, o ministro Luiz Fux. Quatro anos — e mais de r$ 5 bilhões — depois, retirou o caso da pauta do STF e afirmou que a Câmara de Conciliação do governo federal vai buscar “saída de consenso” entre as partes. Pretexto malandro, pois não há partes a ser conciliadas diante de situação ilegal. A desfaçatez é a de sempre. Foi o mesmo ministro que, ao fazer lobby pela nomeação de sua filha de 35 anos de idade a desembargadora do Rio de Janeiro, dizia: “É o sonho dela. É tudo o que posso deixar para ela” (revista piauí, abril de 2016). Deu certo. A família, claro, agradece.

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...