quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A escravidão não acabou


Trabalho escravo no Brasil entre 2003 e 2016, em porcentagem

349 empregadores ainda submetem os contratados a condições degradantes e subumanas
Com um adiantamento que podia chegar a cerca de 60 reais, dezenas de trabalhadores rurais foram seduzidos na década de 1990 para capinar juquira na Fazenda Brasil Verde, no Sul do Pará. Essa espécie de mato, conhecida por incomodar fazendeiros na criação de gado, foi a principal razão para um dos casos mais simbólicos de flagrante de trabalho escravo na história do País. No último mês de dezembro, enfim, a consequência: o Brasil foi a primeira nação a ser condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não prevenir a prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas.
Sobraram evidências para a responsabilização do Estado brasileiro no caso. Além de serem ameaçados caso abandonassem o emprego, os trabalhadores resgatados nesse local dormiam em barracões cobertos de plásticos e palha, sem proteção lateral, o que permitia a entrada de chuva e ventos durante a noite. Também não havia cama, o “alojamento” era de redes.
E a água, imprópria para consumo, assim como a alimentação oferecida. Isso não impedia que os trabalhadores rurais tivessem essas “despesas” descontadas de seus vencimentos, que nunca chegavam a ser pagos de fato. Ao todo, somente nessa fazenda, mais de 300 trabalhadores foram resgatados, entre 1989 e 2002.
Foi para combater situações como essa que o Brasil começou a publicar, em 2003, o “Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo”, mais conhecida como a Lista Suja do Trabalho Escravo, que reúne nomes de empresas ou pessoas que colocaram trabalhadores em situações degradantes ou forçadas de trabalho. Essa importante ferramenta, reconhecida internacionalmente, não foi publicada, no entanto, pelo governo Michel Temer no último ano, o que pode sinalizar um retrocesso maior a caminho.
A gestão peemedebista aproveitou-se de uma decisão judicial já revista para, simplesmente, ignorar a existência desse cadastro. Isso porque em dezembro de 2014, durante o recesso de fim de ano, o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu liminarmente e de forma monocrática o pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) para suspender a publicação. A Abrainc representa as principais construtoras do País e está sob comando, atualmente, da MRV Engenharia.
A medida cautelar foi cassada, entretanto, pela ministra Cármen Lúcia, em maio de 2016 e o Ministério do Trabalho foi liberado para voltar a divulgar o cadastro há mais de oito meses. Mas nenhuma lista foi oficialmente divulgada até agora. A decisão do Supremo levou em conta uma nova portaria interministerial, publicada no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, para driblar o impasse.
Na prática, a portaria flexibiliza as regras de manutenção do cadastro de empregados. Por essa mudança, as empresas flagradas com trabalhadores em condições análogas à escravidão passam a figurar em uma nova lista se firmarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial com a União. Isso significa que, desde então, o governo poderia publicar duas listas: uma com empresas que se comprometeram a solucionar o problema e outra com as que não mostraram intenção de tomar providência alguma.
Ainda assim, desde que assumiu, o governo Michel Temer ignora essa possibilidade. A omissão deliberada fez com que o Ministério Público do Trabalho ajuizasse uma ação civil pública para obrigar o governo federal a voltar a atualizar o cadastro de empregadores envolvidos com escravidão. No dia 19 de dezembro, o juiz Rubens Curado Silveira, da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, reconheceu a importância do tema e determinou que uma nova lista fosse publicada em até 30 dias, a partir do momento em que o governo fosse notificado da decisão.
Na decisão, Silveira lembrou justamente o caso da Fazenda Brasil Verde. “Esse foi o primeiro caso decidido pela CIDH [Corte Interamericana] sobre escravidão e tráfico de pessoas, o que acabou por colocar a República Federativa do Brasil no 'banco dos réus' do plano internacional", observa o magistrado.
"Nesse cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão atacada, pois sinaliza um retrocesso injustificado no trato do tema em uma quadra da história em que o Estado brasileiro deveria, em resposta à condenação que lhe foi imposta, redobrar os esforços em busca da extinção definitiva do trabalho escravo em seu território”.
Para Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e um dos autores da ação, essa postura marca o retrocesso de políticas públicas até então elogiadas por órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). “A publicação da Lista Suja é uma política de Estado e não uma política de governo. O combate ao trabalho escravo tem de continuar”, critica. “Essa postura omissiva vem desde maio para cá e não existe justificativa para isso.”
Além de uma ferramenta de defesa dos direitos humanos, a Lista Suja também era uma referência para o mercado e bancos na hora de conceder financiamentos ou fazer negócios com determinadas empresas. Mesmo instituições privadas utilizavam o cadastro feito pelo Ministério do Trabalho antes de concluir operações de crédito para companhias. A decisão do governo federal de impedir o acesso a essa lista coloca todas as empresas no mesmo patamar.
“Para além dos direitos humanos e da questão de acesso à informação e liberdade de imprensa há a questão muito clara de mercado (para a publicação da lista). É por isso que as empresas sérias querem essa informação, é uma questão de risco. O mercado brasileiro aprendeu que só tem a ganhar ao gerenciar esse risco, não é fazer com que as empresas percam negócios”, alerta o jornalista e presidente da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamato.
Atualmente, é a ONG presidida por ele que tem conseguido obter e divulgar a Lista Suja com a ajuda da Lei de Acesso à Informação. A última foi obtida em junho do ano passado e apresenta 349 nomes de empregadores.
Para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a postura do governo federal não encontra respaldo nem mesmo entre a classe empresarial do País. “Existe um grupo majoritário que não quer ser confundido com os escravagistas, porque isso pode fechar o acesso de um produto a determinado país vizinho ou cadeia produtiva no exterior”, enfatiza o Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o Trabalho Escravo da CPT.
As vozes pela atualização da lista não vêm apenas de organizações de combate ao trabalho escravo e do Ministério Público, a ONU também fez a mesma recomendação ao Brasil. No ano passado, o órgão lançou um artigo técnico de posicionamento sobre o tema, em antecipação às comemorações do Dia do Trabalho. Para evitar retrocessos nas conquistas alcançadas pelo Brasil, o documento da ONU faz uma série de recomendações, entre elas a reativação da chamada "Lista Suja" e a manutenção do conceito atual de “trabalho escravo”, previsto no Código Penal Brasileiro.
"Nota-se uma crescente tendência de retrocesso [no Brasil] em relação a outras iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo, como por exemplo, o Cadastro de Empregadores flagrados explorando mão de obra escrava, comumente reconhecido por 'Lista Suja', que foi suspenso no final de 2014", registra a organização.
Nada disso comove o ministro Ronaldo Nogueira, do Trabalho, mal assumiu a pasta, avisou a interlocutores que não iria publicar a lista. A secretária Especial dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania, Flávia Piovesan, que tem capitaneado todas as ações sobre o assunto, em novembro anunciou a coordenação de um Pacto Federativo para Erradicação do Trabalho Escravo com o estado do Pará, a unidade da Federação com o maior número de casos. Nogueira enviou seu secretário-executivo, Antonio Correia de Almeida, para a cerimônia, mas a assessoria de comunicação do ministério mal registrou o fato em seu site.
Não está claro se a postura decorre de uma decisão particular do ministro, ou se há algum tipo de orientação vinda do ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha. Em dezembro, uma operação das polícias Militar, Civil e Ambiental de Mato Grosso, que investiga desmatamento ilegal, encontrou em péssimas condições as acomodações de empregados em uma fazenda de Padilha, em Mato Grosso, e encaminhou as imagens ao Ministério Público do Trabalho, diante da suspeita de trabalho análogo à escravidão.
Pressões de empresas do setor da construção civil, de parlamentares ou até mesmo de ministros por conta da repercussão negativa da Lista Suja do Trabalho Escravo não são novidades no País. Esse tipo de relato também era comum nas gestões petistas e encontrava conivência, inclusive, entre parlamentares do PT e integrantes do governo Dilma. No entanto, a postura da gestão Temer, mesmo com vozes dissonantes como a de Flávia Piovesan, pode sinalizar mudanças mais preocupantes. 
Há algum tempo que integrantes da bancada ruralista tentam abrandar no Congresso a definição de trabalho escravo, com o objetivo de impedir que flagrantes de trabalho em condições desumanas seja enquadrado nessa prática. Um dos patrocinadores desse ponto de vista é justamente o líder do governo no Congresso, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que foi ministro de Temer. 
Em 2014, quando os congressistas discutiam a PEC do Trabalho Escravo, Jucá tentou emplacar sua tese sob o argumento de que os termos utilizados para a identificação de trabalho escravo eram “genéricos”. “O que é sumamente revoltante para alguns pode não o ser para outros”, amenizava no texto de seu projeto. “Principalmente porque as condições de trabalho em geral não são lá essa maravilha nos campos distantes, nas minas, nas florestas e nas fábricas de fundo de quintal.”


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