Prof. Dr. Marcelo Domingues Roman - Prof. de Psicologia da UNIFESP /Campos Baixada Santista -
Colaborador do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo -Texto publicado no Jornal do Litoral
(Baixada Santista)
Torna-se cada vez mais comum crianças e adolescentes serem encaminhados a
serviços de saúde porque apresentam problemas na escola. Esse fenômeno não é novo e
tem sido chamado de medicalização da educação: trata-se de reduzir questões
escolares, e consequentemente sociais, a problemas médicos. Isso vem se intensificando
a partir do uso de psicoestimulantes para controle de hiperatividade e incremento da
capacidade de atenção. Também tem se tornado comum crianças e adolescentes serem
encaminhados a serviços de justiça por razões semelhantes, sobretudo quando assumem
formas agudas ou tendem a se cronificar, evidenciando, assim, outro fenômeno também
conhecido entre nós, a chamada judicialização, ou seja, a redução das mesmas
questões a problemas de justiça. Se no primeiro caso assistimos à administração de
nocivas drogas psiquiátricas a sistemas nervosos ainda em formação, no segundo nos
assombramos com o selamento de destinos à margem da sociedade e, pior, operado por
profissionais encarregados de proteger e tratar a infância.
A apresentação sucinta de um caso pode deixar mais claro o que estou afirmando.
Wilson era um aluno de 5º ano quando o conheci. Ele costumava ter “surtos” – assim
eram chamados, pelos agentes escolares, seus ímpetos de indisciplina e aparente
descontrole. Em um desses ímpetos, a escola chamou a polícia, que a muito custo o
controlou e decidiu por enviá-lo ao hospital em uma ambulância. O acontecimento é
assustador, ainda mais se tratando de um menino de 10 anos. Mas, dirão os da escola,
seu comportamento atingiu um nível inaceitável: agredia colegas e educadoras, gritava,
xingava, saía correndo pelos corredores do prédio. Tanto é que havia sido diagnosticado
por um especialista como portador de Transtorno do Déficit de Atenção com
Hiperatividade (TDAH), tendo sido lhe receitado Ritalina®. E, como estamos em um
município em que esse medicamento é distribuído gratuitamente à população, não
haveria razões para sua destemperança, a não ser por negligência do aluno ou de sua
família.
É preciso que analisemos com calma. O caso é complexo e não aceita respostas
simples, o que, de cara, já nos faz desconfiar de uma saída baseada apenas no controle
medicamentoso. A quem se dedica a estudar seriamente o fenômeno humano, torna-se
claro que estabelecer causas lineares entre causa e efeito é, no mínimo, ingenuidade. Há
que se pensar, sempre, em multideterminação, o que afasta a resposta tão frequente
quanto simplista de que o comportamento de Wilson é efeito de mau funcionamento
cerebral. A medicina não dispõe ainda de exames que afiram desequilíbrios
neuroquímicos, ainda que estes desequilíbrios sejam propagandeados como causas
inequívocas de supostos transtornos. Além disso, autocontrole voluntário do
comportamento e da atenção são habilidades ensinadas e aprendidas, e não simples
efeitos do funcionamento cerebral. Portanto, é mais acertado pensarmos que o
funcionamento cerebral é efeito de processos de aprendizado social, não o contrário.
Assim, as raízes da forma como Wilson se comporta devem ser buscadas nas suas
relações com o contexto que o envolve, ao longo de toda sua existência. Isso significa
levar em consideração sua vida dentro e fora da escola; sua história familiar e seu
percurso na instituição. Escola e família, porém, também devem ser contextualizadas
social e historicamente. É preciso saber a que classe social pertence a família, a que
condições de vida está sujeita, qual a qualidade das políticas públicas de bem estar social
a que tem acesso, quais as transformações tecnológicas, econômicas e sociais mais
amplas que acabam influenciando o comportamento não só de Wilson e sua família mas
de todos nós. Do mesmo modo a escola: qual a sua qualidade? Os professores são bem
pagos, têm boa formação, boas condições de trabalho e participam democraticamente
das decisões institucionais? Os conteúdos e métodos de ensino são adequados? Toda
essa problemática é dissimulada quando apenas ministramos, ou tentamos ministrar,
comprimidos de Ritalina® para Wilson.
Mas há quem ganhe com isso, evidentemente. Em primeiro lugar a indústria
farmacêutica com seus lucros astronômicos, capazes de financiar pesquisadores que
divulgam o transtorno e o tratamento como verdades científicas avançadas e
inquestionáveis. O sistema de saúde mental infantil do município também ganha, pois
oferece com menor gasto uma resposta à demanda, uma vez que não se dispõe a lidar
com a complexidade envolvida na questão. A escola e a professora de Wilson, caso ele
tome o remédio, também ganham: se asseguram que o problema está apenas no aluno
ou em sua família e não precisam, assim, questionar seu próprio trabalho. Então, quer
dizer que o remédio funciona? De fato, os psicoestimulantes têm a capacidade inicial de
aumentar a performance das funções cognitivas, entre as quais a capacidade de focar a
atenção. É por esse motivo que a cocaína, ou mesmo a Ritalina®, são utilizados por
profissionais ou estudantes em momentos estratégicos ou de pressão.
Uma criança medicada na sala de aula é, inicialmente, uma criança focada e quieta.
Sim, porque, paradoxalmente, o estimulante faz com que as crianças se aquietem, a
ponto de se tornarem como zumbis. Na verdade, zombie-like é um sinal de toxicidade da
medicação, cuja lista de reações adversas é alarmante: nervosismo, insônia, cefaleia,
discinesia, tontura, dor abdominal, humor depressivo transitório, retardamento do
crescimento etc. – a lista é grande; basta consultar a bula do medicamento. Seu consumo
prolongado é sugerido, por certas pesquisas, como determinante de peso para a
drogadição na adolescência e a ocorrência de pensamentos suicidas. Há longo prazo,
parece que o medicamento induz a efeitos inversos do que se propunha a realizar:
agitação motora e dificuldade de aprendizagem. Esse é o preço que estamos dispostos a
pagar para calar nossas crianças?
Fiquei inicialmente animado quando soube que o caso de Wilson seria discutido por
profissionais de saúde, assistência social e educação, numa espécie de reunião interserviços.
Nessa reunião, foi comentada sua complexa situação familiar: mãe viciada em
cocaína, capaz de se prostituir para conseguir a droga; pai enfraquecido; relação
erotizada entre mãe e filho, ambos refratários a prescrições medicamentosas. Isso sem
contar outros agravantes comuns a vidas castigadas pela pobreza. A discussão foi bem
rica, pois contou com diversas perspectivas profissionais provenientes de diferentes
serviços públicos. Porém, algo unificou a diversidade: a sensação de impotência diante da
complexidade do caso. Optaram então por acionar o Ministério Público, a fim de que este
pressionasse Wilson e sua mãe a aderirem à medicação. Assim, um caso que
manifestava, a seu modo, a difícil condição social a que são sujeitas inúmeras famílias em
nossa sociedade, um caso que tinha como uma de suas vias de expressão condutas
antissociais na escola, expressão esta transformada em patologia a ser medicada, agora
encaminhava-se a se tornar um caso de justiça.
Não é aceitável que continuemos a culpar e reprimir aqueles que mais sofrem as
condições aviltantes de nosso funcionamento social. Não é possível que continuemos
formando profissionais que se utilizam de meios pretensamente eficazes, neutros,
“científicos”, para perpetuar formas de submissão dos deserdados e de
desresponsabilização das instituições sociais. São necessários investimentos maciços em
melhores condições de vida, em relações sociais humanizadas e em condições dignas de
trabalho nas instituições de educação, saúde e assistência social, não na indústria
farmacêutica nem em aparatos de controle jurídico e policial de problemas sociais.
Fábio Alexandre Gomes
Assistente Social - Cress 33.761/9ª região
(12)9737-5494
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