terça-feira, 28 de junho de 2011

O quebra-cabeça do crime do Brasil - Entrevista com Daniel Cerqueira

ENTREVISTA / Daniel Cerqueira
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Na contramão das recomendações acadêmicas, que sugerem focar pesquisas em recortes específicos, o economista Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), encarou – e cumpriu - um desafio gigantesco: mensurar as causas e consequências do crime no Brasil.

Para isso, Cerqueira teve que vasculhar a literatura disponível e criar indicadores que não existiam. Levou cinco anos, mas concluiu seu doutorado em Economia pela PUC-Rio e trouxe à tona dados e conclusões fundamentais para os rumos da segurança pública no país, que ele divide com a sociedade nessa entrevista ao Comunidade Segura.
A sua tese de doutorado tem um título audacioso, “Causas e consequências do crime no Brasil”. É possível mensurar a criminalidade, apesar de tantas variáveis e subjetividades envolvidas?
Sem dúvida é possível. Existe uma área de estudo de economia do crime em que o objetivo é exatamente desenvolver métodos para conseguir identificar e estimar estes efeitos causais que estão por trás da criminalidade e qual o impacto de cada um dos determinantes do crime para fazê-lo aumentar ou diminuir. Queríamos entender se a evolução dos homicídios no Brasil nos últimos 30 anos era um puzzle, um enigma, ou se podia ser explicado pelo conhecimento disponível.
E podia?
Concluímos ao final do trabalho que sim, ou seja, o padrão de evolução dos dados permitiram explicar 2/3 da evolução dos homicídios no período. Contudo, para chegar a essa conclusão, tivemos que contornar enormes obstáculos, consubstanciados pela completa inexistência de indicadores minimamente confiáveis para se fazer esse tipo de análise. Fiquei pasmo. Não encontrei, por exemplo, nenhum estudo publicado colocando uma série sobre o efetivo policial no Brasil desde 1981. Ninguém sabe quantas pessoas foram presas, qual a prevalência de drogas ilícitas, de bebidas alcóolicas, de armas de fogo nas cidades.
As coisas mais triviais e básicas que seriam fundamentais para desenvolver qualquer análise do tipo não existem. Toda a análise que se tinha era baseada simplesmente em avaliações qualitativas e espaciais. Então nosso primeiro esforço foi juntar essa série de indicadores fundamentais e ver se, de acordo com eles e com o que se conhece na Academia e em artigos publicados internacionalmente, era possível explicar o crime no Brasil e o que motivou o aumento dos homicídios e mais recentemente a sua diminuição.
E que fatores explicam tantos homicídios no Brasil - um milhão em 30 anos?
Pegamos sete fatores de maior consenso na literatura de etiologia criminal: as questões socioeconômicas (renda e desigualdade), fatores demográficos (a proporção de homens jovens na população), indicadores da justiça criminal (taxa de encarceramento) e a taxa de efetivo policial. Além disso, levamos em conta fatores com grande poder criminogênico: armas de fogo, drogas ilícitas e bebidas alcoólicas.
O maior trabalho nessa fase foi conseguir produzir esses indicadores que até então não existiam no Brasil - são realmente inéditos e fizemos isso de 1981 até 2007 com todo o país. Com base neles e com o conhecimento disponível na Academia, fomos ver a importância de cada um destes fatores, se mudaram de década para década e qual a sua dimensão.
Como é a metodologia para mensurar os fatores?
Basicamente, a metodologia quantitativa empregada procura identificar uma relação causal entre cada um dos fatores e crimes (o que é muito diferente de uma correlação), ao isolar todas as demais variáveis que poderiam interceder nessa relação, como as características idiossincráticas das cidades e variações nas condições ambientais das localidades. Em particular, existe uma medida muito utilizada pelos economistas, conhecida como “elasticidade”, que procura mensurar o impacto proporcional em uma variável, causado por uma mudança proporcional em outra variável. Por exemplo, se cada uma daquelas variáveis analisadas tivesse variado em 1%, quanto isso geraria a mais ou a menos de homicídios. A partir dessas estimativas que já existiam na literatura e com base na evolução do padrão de dados, investigamos o grau de importância desses fatores.
A que conclusões chegaram?
Na década de 1980, o fator mais importante que impulsionou o aumento dos crimes foi o sócioeconômico. Esse período é conhecido como “a década perdida”, quando houve um aumento enorme da desigualdade, grandes mazelas socioeconômicas e o país parou de crescer.
Olhando para as condenações e aprisionamentos de homicidas, vemos em meados daquela década uma ruptura no sistema judicial, que faliu. A impunidade cresceu barbaramente. No começo da década de 1980, para cada 100 homicídios cometidos, a polícia prendia 61 homicidas. No final da década prendia apenas 35, ou seja, praticamente dobrou a impunidade.
Já mais para o final da década, percebemos um grande crescimento do número de armas de fogo e das drogas ilícitas. Esse casamento dessas duas dinâmicas de armas e drogas é que deu a tônica para o movimento de aumento do crime violento que prosseguiria durante toda a década de 1990.
A década de 1990 também foi perdida?
O que se vê nessa década, impulsionado por esse passo acelerado dos homicídios, é a sociedade atônita querendo se proteger, comprando armas e contratando serviços de segurança privada. Tivemos uma explosão da indústria da segurança privada e também o aumento das armas de fogo, enquanto o Estado estava quebrado, falido.
Nesse período houve uma redução dos salários dos profissionais da segurança pública vis-a-vis os da segurança privada, ao mesmo tempo em que geralmente a escala de trabalho da segurança pública era  num esquema de 24 por 72 horas. Isso criou os ingredientes para um equilíbrio perverso nesse jogo: menos segurança pública, mais segurança privada e mais lucro privado. E quem estava nessas duas pontas? O policial, que trabalhava nas duas modalidades. É claro que há um conflito de interesses
E isso mudou na última década, já no século XXI?
Já nos anos 2000, o que aconteceu aparentemente foi uma espécie de círculo virtuoso da segurança. Houve uma mudança no debate das políticas públicas, com a participação mais decisiva do Estado nos planos federal e municiapl. Além disso, vários indicadores que analisamos melhoraram, como em relação às questões sócioeconômicas. A proporção de homens jovens diminuiu na maioria dos estados. Na questão da arma de fogo, houve o Estatuto do Desarmamento em 2003. Em relação à Justiça criminal, vários estados investiram, observando-se aumento do efetivo policial e da taxa de aprisionamentos. Então, basicamente todos os indicadores confluiam numa direção positiva para diminuir homicídios.
E não foi o que aconteceu?
O único indicador que estava remando contra essa maré positiva era justamente a prevalência das drogas ilícitas, que a gente poderia até classificar como uma epidemia que acontece e cresce sobretudo em estados que até então não viam isso como um maior problema. De fato, de 2001 a 2007 houve um aumento de 144% na prevalência por drogas psicoativas ilícitas no Brasil.
Antes, o problema das drogas era principalmente no Rio, em São Paulo e em algumas localidades específicas, como no polígono da maconha, mas depois de 2000, os dados revelam um aumento e uma dispersão desses mercados ilícitos para vários estados do Nordeste, Minas Gerais e Distrito Federal. Aí vemos, nesses estados, aumentar também armas e homicídios. De 2001 a 2007, em 11 estados houve diminuição dos homicídios, ao passo que no resto do país houve aumento, muito influenciado pela violência sistêmica ocasionada pelo mercado ilícito des drogas.
E na sua opinião qual seria a solução para a questão das drogas?
Ela ainda não existe nem no Brasil nem no mundo. Nem se tangenciou a questão principal de política pública relacionada à droga, que tem a ver com diminuir a demanda por drogas e a violência sistêmica resultante do mercado ilícito. Há de um lado a guerra às drogas capitaneada pelos EUA e do outro a política de redução de danos, que é uma política importante, mas de saúde pública. As duas soluções não resolvem o problema da demanda nem da violência sistêmica ocasionada pela existência dos mercados ilícitos. Temos que imaginar uma outra saída, que não discutimos na tese, e deve ser aprofundado futuramente.
Que saída seria esta? Legalizar?
A questão é a seguinte: se não conseguimos combater a oferta de drogas e se a questão de saúde pública não resolve o problema, talvez a gente tenha que falar em legalizar e o Estado controlar a droga. O imposto poderia ser usado para prevenção. Pelo que conheço sobre adictos, depois que a criança se viciou, é um transtorno para a vida dela e da família para sempre. Ainda que se façam políticas de saúde pública, é difícil reverter esse processo. Tem que se atuar antes, e para isso é preciso entender que mecanismos são esses que arrastam o menino para provar essas drogas e promover a prevenção.
Nas suas pesquisas, o senhor concluiu que, para cada 1% a mais de armas, os homicídios aumentam 2%. E, para cada 18 armas apreendidas pela polícia, uma vida é salva. Como chegou a esses números?
É um trabalho de identificação causal. Queremos saber o efeito de armas sobre determinados crimes. Mas, como não há uma medida de estoque de armas de fogo nas cidades, tivemos que arrumar uma proxy, ou seja, um indicador que esteja altamente correlacionado com esta variável desconhecida.
Internacionalmente, a variável mais relevante é a proporção de suicídios cometidos por arma de fogo (PAF). Então fomos nos microdados do SIM, verificamos quantos suicídios foram cometidos com arma de fogo e criamos nosso próprio indicador, que é a proporção de suicídios por PAF.
Daí vem um problema metodológico enorme: queremos saber o efeito só da arma de fogo sobre o crime. Pode ser que observemos nos dados que quanto mais armas mais crimes, mas não podemos dizer que existe uma causalidade - é uma mera correlação.
O motivo da causalidade poderia ser até inverso: pelo fato de as cidades serem mais violentas, as pessoas se armam para se defender. Então tínhamos que expurgar essa possibilidade e outras, como variáveis sócioeconômicas, a melhora do trabalho da polícia e questões específicas das cidades, por exemplo, ser de fronteira. Todo o trabalho metodológico é como expurgar todas as possibilidades e ficar apenas com o efeito de armas sobre crime.
E como fizeram isso?
Há métodos econométricos e estatísticos quantitativos. Mas para o método poder funcionar tem que haver uma variação exógena na medida de armas pretendida. A demanda de armas teria que mudar por algum motivo que caiu do céu, que seria essa variação exógena. E isso só foi possível porque houve essa variação exógena que foi a lei do Estatuto do Desarmamento. Ela funcionou como uma informação preciosa para que pudéssemos identificar exatamente a relação de causalidade entre armas e crimes.
O que o senhor acha do projeto do senador José Sarney de realizar um novo pebliscito sobre o comércio de armas?
Acho que é tentar calçar o sapato antes das meias. E ainda corremos o risco de perdermos de novo, o que eu acho que iria acontecer. A sociedade votou há cinco anos e mais de 60% votou a favor das armas, então acho que nesse momento querer voltar a essa discussão, além de desrespeitar a opinião da maioria, é dividir esforços, perder tempo e dividir o país entre duas opiniões, quando há coisas muito mais efetivas que podem ser feitas agora, como aplicar corretamente o Estatuto do Desarmamento e melhorá-lo. Se fizermos isso, e acredito que seja um consenso da sociedade, o efeito na diminuição e no controle das armas vai ser substancial.
Políticas e campanhas de desarmamento realmente surtem efeito na redução dos homicídios?
Nesse momento, pouco. As pessoas que queriam entregar armas entregaram lá atrás, tanto que na segunda campanha já houve muito menos entregas. É claro que é importante fazer campanhas, mas não acredito muito nesse efeito de as pessoas se sensibilizarem. Quem tinha que ser sensibilizado já foi. É mais importante fechar alguns buracos nessa torneirinha que leva armas da legalidade à ilegalidade.
O que se pode fazer para melhor controlar as armas?
Primeiro agir na questão das armas apreendidas pela polícia. A gente sabe que no Brasil a polícia é extremamente corrupta. Boa parte dessas armas é desviada e volta ao mercado. Então após um perito fazer uma boa documentação sobre a arma apreendida, a ranhura da bala, o que pode servir de prova para um processo judicial, a arma deve ser imediatamente inviabilizada. Também tem que haver mais controle das armas de policiais e segurança privada. A pessoa compra a arma e de repente perde, extravia, é roubada. É muito sério a pessoa ter um registro de arma de fogo, ela teria que responder até criminalmente pelo sumiço. Em terceiro lugar, temos que melhorar a lei, tapando aqueles buracos que foram feitos desde 2003, como a inclusão de várias categorias profissionais que puderam ter arma de fogo.
Que categorias não deveriam ter porte de arma?
Eu não vejo motivo nenhum para a Guarda Municipal andar armada. No máximo, arma de baixa letalidade. Mas o próprio Estatuto facultou às cidades com mais de 500 mil habitantes a permissão para as guardas municipais andarem armadas. Outra coisa que ninguém discute no Brasil é por que o Corpo de Bombeiros é militar e por que bombeiros usam arma. Não consigo encontrar nenhuma explicação minimamente razoável.
Que outras medidas seriam eficazes?
A reforma das polícias, uma reforma radical para controlar o desvio de conduta. É claro que não se pode generalizar, pois temos policiais extremamente preparados e éticos, mas, de um modo geral, institucionalmente, as polícias no Brasil, em várias unidades federativas são corruptas. Temos que fazer uma reforma radical, que não passe só por fortalecer marginalmente as corregedorias e apurar um desvio de conduta depois que alguém dê queixa.
Tem que ser uma mudança radical proativa. Não precisa ser muito esperto para saber que nos pátios dos batalhões de Polícia Militar e ao redor das delegacias de Polícia Civil, em muitos estados, se encontra um monte de Mitsubishi, de Hilux, carros caríssimos importados, que são de policiais. Temos que pesquisar isso direito, porque o policial tem um poder enorme: ele tem o poder de vida e morte, então ele tem que ser, por um lado, bem remunerado e valorizado mas, por outro, são necessários instrumentos mais eficazes para podermos atuar contra o desvio de conduta.

Causas e consequências do crime no Brasil - Tese de doutorado de Daniel Cerqueira apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Economia da PUC-Rio.

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