Liberdade material e liberdade
espiritual estão intimamente ligadas. A cultura subentende homens livres. Por
esses, somente por esses, é que ela pode ser ideada e realizada.
Dificulta-se de dia para
dia o trato de homem para homem. Pela precipitação de nosso modo de viver, pela
intensidade do trânsito, pelo trabalho em conjunto nos escritórios e pela
moradia em comum de muitas pessoas em pequeno espaço, recebemos, continuamente
e pelos mais variados modos, a impressão de que somos estranhos a conviver com
estranhos. As circunstâncias da vida não permitem que convivamos de outro modo,
de homem para homem. Essa restrição que nos é imposta no livre exercício da
convivência humana torna-se tão generalizada, tão cotidiana, tão íntima, que
afinal terminamos nos afeiçoando à situação reinante, a ponto de não mais
darmos acordo de que a nossa conduta impessoal, em tudo e por tudo, representa
de fato uma anormalidade. Em muitas e muitas situações chegamos até a não
sentir mais essa impossibilidade de conviver de homem para homem, indo afinal
ao cúmulo de não fazê-lo quando isso se torna possível e até mesmo oportuno. (...) As afinidades com o nosso próximo desaparecem. Estamos aí a caminho franco da desumanização. Onde a ideia de que a pessoa como pessoa nos deva interessar periclita, periclitam também com ela a cultura e a moral. Daí para a desumanização completa da vida pouco vai; é questão apenas de tempo.
(...)
Toda a nossa vida
espiritual decorre dentro de organizações. Desde a infância, o homem da
atualidade é de tal forma assediado pelas ideias de disciplina que aos poucos
vai perdendo de vista a sua existência individual, para somente continuar
vivendo e pensando dentro do espírito de uma coletividade. De um conflito entre
modo de pensar e modo de pensar, de choques de ideias entre uns e outros, que
fazia a grandeza do Século Dezoito, hoje não se tem mais notícia. Naqueles
áureos tempos não se reconhecia a obrigação de acatar o modo de pensar das
coletividades. Todas as ideias, fossem quais fossem, tinham de passar primeiro
pelo crivo da opinião de cada um. Hoje, porém, está arvorada em regra comum, e
muito natural, submeterem-se todos, sem discrepância, às concepções coletivas
vigentes nas sociedades organizadas. Tanto para si como para os outros o
indivíduo estabelece, de antemão, que em matéria de nacionalidade, confissão,
filiação partidária, profissão e semelhantes cogitações já existem à priori, em
cada caso, um certo número de concepções firmes e intangíveis. Essas têm força de
um tabu e estão definitivamente a salvo não só da crítica como até de serem
objeto de uma simples e inocente palestra. Esse sistema pelo qual mutuamente
nos sonegamos a qualidade de seres pensantes, é por eufemismo chamado
"respeito pelas convicções", como se pudesse existir uma convicção
sem pensamento e crítica.
(...)
Quando a mata virgem é
derrubada, surge em seu lugar a capoeira, de vegetação mais fraca. Assim
também, quando as grandes convicções são desbancadas, são logo substituídas em
suas funções por outras muitas, de menor significado, cujos efeitos redundam em
algo pior.
(...)
Os mais árduos problemas
com que temos de arcar, até mesmo aqueles de feição caracteristicamente
econômica ou material, em última análise só podem ser solucionados pela
predisposição espiritual. A mais perfeita reorganização das coisas poderá ir
até certo ponto, depois emperra. Nenhuma outra possibilidade imaginável existe
de renovação do mundo, a não ser aquela mediante a qual primeiro nos
resolvamos, embora esmagados sob peso de duras contingências, a nos tornar
homens novos, inaugurando uma sociedade nova, com renovados propósitos,
harmonizando os desentendimentos reinantes entre os povos, possibilitando assim
o redespertar da cultura. Tudo o mais é tempo perdido, porque estamos fazendo a
sementeira não de coisas do espírito, mas de preocupações meramente externas da
vida.
(...)
A história de nosso tempo
é de uma imbecilidade sem precedentes. Futuros historiadores hão de extenuar
nela sua argúcia e sua erudição, dissecando-a em todos os sentidos. A
explicação dela, porém, para os nossos dias, como para todos os tempos
vindouros, é bem simples de ser enunciada, a saber, somos uma geração que
pretendeu edificar uma cultura sem fundamento moral; eis tudo.
(...)
Os ideais culturais de que
o nosso tempo precisa não lhe são estranhos. Já estiveram de posse da
humanidade em tempos passados e andam por aí em tantas fórmulas passadistas. Em
suma, nada mais resta a fazer que restabelecer-lhes o antigo prestígio, tomando
novamente a sério o tema da cultura espiritual. E é o que podemos realizar
mediante o simples processo de cada um se colocar em choque com a desnorteada
realidade ambiente.
(...)
Todas as épocas vivem
consciente ou inconscientemente sob a influência das ideias formadas pelos seus
pensadores.
(...)
A derradeira forma do
saber, em que o homem chega à compreensão do próprio ser no ser universal é,
costuma-se dizer, de índole mística. Com isso queremos dizer que já não se
manifesta numa reflexão comum, mas é, de algum modo, intuída.
Mas por que razão supormos
agora que a estrada do pensamento se detém diante da mística? Não resta dúvida
de que até agora a razão raciocinante costumava estacar nas imediações da
mística, só se dispondo a ir para a frente enquanto houvesse possibilidade de
se alargar sem prejuízo da lógica. Por seu lado, a mística desbancava, tanto
quanto podia, a razão raciocinante para não permitir que surgisse a ideia, como
se a mística de algum modo tivesse de prestar contas à razão. No entanto, essas
duas, que nada querem saber uma da outra, se completam.
É na reflexão que o
discernimento e a vontade, que dentro em nós estão ligados de maneira
misteriosa, procuram compreender-se. O supremo saber a que aspiramos, é o
conhecimento da vida. O nosso discernimento vê a vida por fora, a nossa vontade
por dentro. E, assim, desde que a vida é o derradeiro objeto do saber, será
também o supremo saber experiência pensante da vida.
(...)
Quando o pensamento se põe
a caminho, deve estar disposto a tudo, até à hipótese de não conseguir chegar a
conclusão alguma. Mesmo assim, se a nossa predisposição de agir estivesse
fadada a lutar indefinidamente e sem resultado com essa ausência de sentido da
vida e do mundo, mesmo assim, essa dolorosa condição de perplexidade seria
ainda melhor que permanecer alheio a qualquer reflexão, uma vez que o próprio
estado de perplexidade já representa um caminho de purificação.
Contudo, não existe ainda
a necessidade de uma tal resignação. Sentimos a afirmação da vida como algo
necessário e valioso. Donde deduzirmos que, de algum modo, essa afirmação
encontre suas bases na reflexão. Surgindo em nosso desejo de viver, deve ter
também a sua explicação no sentido da vida. É possível que seja necessário
estabelecer de outro modo, diferentemente do que se tem feito até agora, o
fundamento da concepção da vida no tocante à afirmação da existência e do
mundo. O pensamento até à hora presente cuidava em extrair do sentido do mundo
o sentido da vida. É possível que sejamos compelidos a deixar de lado a ideia
do sentido do mundo e ir buscar no desejo de viver, que existe em nós, o
sentido da vida.
Embora os caminhos pelos
quais tenhamos que trilhar ainda sejam obscuros, a direção que temos de tomar é
clara. Compete a todos, no conjunto, procurar saber qual seja o sentido da
vida, e de lutar cm conjunto para conseguir esse objetivo, a fim de que se
consiga estabelecer uma concepção afirmativa do mundo e da vida, em que a
predisposição de agir que sentimos como indispensável e valiosa encontre apoio,
orientação, clareza, profundidade, sentido moral e fortalecimento.
Reflexões extraídas do livro Decadência e Regeneração da Cultura (Edições Melhoramentos, 1959).
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